26 DE MARÇO DE 2008 - 20h37
por Augusto Buonicore*
O assassinato de estudantes não era novidade durante o regime militar. Mas, naquele final de março, a morte de um garoto de 18 anos, durante uma manifestação, galvanizaria a oposição democrática e popular e daria início o maior movimento de contestação à ditadura desde a sua implantação em 1964.
Um tiro na tarde
Tudo começou com uma manifestação de estudantes contra o preço e as más condições do restaurante Calabouço. Esta não foi o primeiro protesto daqueles jovens que, em geral, eram secundaristas e filhos de famílias empobrecidas. Muitos, além de suas refeições, faziam ali pequenos serviços para complementar sua renda. Portanto, o seu perfil era muito diferente daqueles que freqüentavam as universidades brasileiras.
Os manifestantes do Calabouço, como de hábito, foram atacados pela Polícia Militar. Mas, desta vez, eles não estavam dispostos a apanhar ou correr, como vinham fazendo desde 1964. Por isso, tomaram a corajosa decisão de reagir e o fizeram com paus e pedras. A polícia, desprevenida e assustada, recuou diante desse primeiro confronto. Logo em seguida voltou à carga com redobrada violência, utilizando-se de bombas de efeito moral e tiros. A ordem para a fuzilaria partiu do general Osvaldo Niemeyer Lisboa. No conflito que se estabeleceu um rapaz caiu mortalmente ferido. Seu nome era Edson Luís de Lima e Souto e a data 28 de março de 1968.
Artur Poerner, no seu livro “O poder jovem”, resumiu assim a breve vida do jovem assassinado: “Tratava-se de um menino ainda – completara 18 anos no dia 24 de fevereiro -, parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem pretos e lisos de caboclo nortista. Os dentes – tinha-os estragados, como a maioria dos jovens de nosso país. Órfão de pai, viera, há três meses, de Belém do Pará, para cursar o Instituto Cooperativo de Ensino, anexo ao Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em serviços burocráticos da secretaria e de limpeza no estabelecimento, pois não conseguia emprego. As esperanças que o trouxeram ao Rio estavam ali agora, transformadas no sangue que manchava a caminha branca empunhada pelos seus colegas”.
O oficial que comandava a tropa, sem medo de parecer ridículo, afirmou que a “Polícia Militar atirou por se encontrar numericamente em situação inferior aos estudantes, inclusive em quantidade de armas”. Niemeyer foi afastado de seu posto para que as investigações pudessem ser feitas de maneira isenta. No entanto, ninguém seria punido pela morte do estudante. A impunidade para os “crimes do Estado” seria uma das marcas do regime instalado em 1964.
Em editorial, o Correio da Manhã, revelava toda sua indignação: “Não agiu a Polícia Militar como força pública. Agiu como bando de assassinos (...) A Guanabara, cidade civilizada e centro cultural do Brasil, não perdoará os assassinos”. O general-presidente, Costa e Silva, quando assumiu o cargo, no começo de 1967, prometeu solenemente abrir o diálogo com os trabalhadores e estudantes descontentes. Acenou até mesmo com a possibilidade da eleição de um civil em 1971. Meses mais tarde ficou claro que o único diálogo que o regime conhecia era o da violência.
Os estudantes se recusaram a entregar o corpo de Edson Luís à polícia, temendo que pudesse desaparecer. Por segurança, ele foi levado para a Assembléia Legislativa onde se realizou uma longa e tensa vigília. O governo estadual proibiu a presença da PM no local, mas ela desobedeceu às ordens e realizou atos de provocação, atirando bombas de gás lacrimogêneo e prendendo populares. O clima ficou explosivo.
A notícia da morte do estudante correu de boca em boca. As escolas e teatros cariocas fecharam suas portas. “A impressão que se tem hoje, evidentemente exagerada, é de que todo o Rio de Janeiro passou pelo velório. Nunca a Assembléia havia recebido a visita de tantas celebridades”, escreveu Zuenir Ventura. As filas eram intermináveis e também os discursos. Coroas de flores chegavam a todo momento. Um espírito de indignação tomou conta da cidade. Mataram um estudante. E agora?
Neste luto, começa a luta
O enterro de Edson Luís foi a primeira grande manifestação contra o regime militar. Mais de 50 mil pessoas tomaram as ruas numa última homenagem ao estudante morto. Eram universitários, secundaristas, professores, artistas, clérigos e profissionais liberais. Havia também muitos elementos populares. Uma faixa se destacava: “Assassinaram um estudante. Ele poderia ser seu filho. Das janelas caiam flores e papel picado. Parecia uma reprodução da “marcha da família com deus pela liberdade” com sinais invertidos. Foi a explosão das frustrações de amplos setores das classes médias que haviam apoiado o golpe - em nome da liberdade e da luta contra a corrupção – e agora viam suas expectativas traídas.
No cortejo os estudantes, como de praxe, queimaram uma bandeira dos Estados Unidos e cantaram o hino nacional. Sob o caixão foi colocada a bandeira brasileira. Nada mais justo, o corpo do pequeno Edson, naquele momento, representava o grito represado de toda uma nação.
Diante da casa de Carlos Lacerda ouviram-se vaias e gritos de “fascista” e “abaixo a frente ampla” **. Sinais evidentes da radicalização que vivia o movimento estudantil, particularmente sua vanguarda, sob hegemonia da Ação Popular e de setores de extrema-esquerda dissidentes do PCB. Ironicamente nas semanas seguintes o governo militar acusou a Frente Ampla e Lacerda de incentivarem aquela manifestação.
Sem condições de reprimi-la, o regime tentou esconder a manifestação. Naquele final de tarde as luzes da cidade, misteriosamente, não foram acesas. Esforço inútil. Durante todo o trajeto, os motoristas acendiam os faróis e muitos comerciantes forneciam velas e lanternas. A multidão transformava os jornais em archotes, que queimavam rapidamente. O improviso acabou dando mais grandiosidade à cena. Ninguém esqueceria aquele dia. No final, a massa presente fez um juramento solene: “Neste luto, começou a luta!”.
A notícia do assassinato de Edson Luís teve impacto na maioria dos estados, inflamando o movimento estudantil e oposicionista. Em Goiânia a Polícia Militar invadiu a Catedral Metropolitana, ferindo à bala vários estudantes. O secundarista e engraxate Ornalino Cândido da Silva de apenas 16 anos veio a falecer. Ele parecia muito com uma das principais lideranças secundarista da cidade: Euler Ivo. Isso criou certa confusão quanto à identidade do morto.
Em Brasília também ocorreram confrontos violentos entre estudantes e policiais. Outro jovem levou um tiro no peito. Nos dois casos, seguindo o exemplo dos cariocas, os estudantes enfrentaram a polícia com pedras e paus. Para os estudantes brasileiros a fase de só fugir ou apanhar havia passado. “Dente por dente, olho por olho” era a nova palavra de ordem que surgia nas ruas.
A morte também provocou cisão nas próprias fileiras golpistas. No dia seguinte ao assassinato, o General Mourão Filho – presidente do Superior Tribunal Militar e o principal expoente do golpe de 1964 – declarou: “É incrível que a polícia atire contra estudantes, em uma democracia. Estou indignado, fora de mim, com tais acontecimentos (...) quando se permite que policiais atirem contra estudantes, não podemos ficar tranqüilos em casa, pois fatos como esses poderiam atingir qualquer pessoa de nossas famílias”.
Lacerda, rompido com o regime desde 1965, aproveitou-se do momento para elevar o tom de suas críticas. “A violência tornou-se norma nas relações entre o governo e o povo. (...) Ninguém deseja a baderna, mas ninguém suporta a crueldade e a covardia. É inaceitável que o Exército trate os estudantes como uma horda de inimigos”. Continuou ele: “O Brasil está ultrajado pela orgia da violência (...) É tempo de fazer a revolução pela qual a mocidade anseia, a revolução pela educação e o voto”. Em breve ele constaria da lista de novas cassações.
1º de abril: Nada a comemorar
O próximo encontro entre estudantes e a repressão já estava marcado. Seria quando das comemorações do quarto aniversário do golpe militar. No dia 31 de março o general-presidente Costa e Silva, com as mãos sujas do sangue de dois estudantes secundaristas, afirmou: “Eles querem sangue, mas o país prosseguirá sem sangue porque não estamos com a idéia de violência. Nós queremos a paz”. Paz era uma coisa que não haveria nos dias - e anos - que se seguiriam.
O Correio da Manhã narrou o que aconteceu no dia seguinte: “Por cinco horas e meia (...) mais de cinco mil elementos da PM agrediram, com violência nunca vista, estudantes e populares participantes do movimento de protesto na Guanabara” Continuou o jornal: “O Rio converteu-se num campo de batalha. A polícia caçava pelas ruas estudantes, intelectuais e homens do povo, como se fossem representantes de uma nação inimiga”. Um detalhe: desta vez o número de policiais ferido foi tão grande como o de civis. Afirmou Zuenir Ventura: “poucas vezes a polícia apanhou tanto no Rio de Janeiro”.
Segundo Poerner, 60 manifestantes e 39 policiais ficaram feridos e mais de 321 pessoas foram presas. Mas, a luta continuava bastante desigual: pedras contra balas. Outros dois jovens tombaram mortos na Guanabara: David de Souza Neiva e Jorge Agripino de Paula. Outros quatro ficaram feridos à bala. O I Exército ocupou as ruas da cidade e o general Costa e Silva ameaçou: “custe o que custar a ordem será mantida”. Falava-se na decretação do Estado de Sítio e mesmo na promulgação de um novo ato institucional, ainda mais draconiano que os anteriores. Este era o único diálogo que a ditadura conhecia.
A missa de 7º dia pela morte de Edson Luís também foi marcada pela violência. Como se preparasse o cenário para uma tragédia, o governo decretou ponto facultativo e feriado bancário. Foi sugerido aos comerciantes que não abrissem suas lojas. Desde as primeiras horas, a cidade foi tomada pelo exército. Havia um odor insuportável de pólvora saturando o ambiente. Na missa da manhã, encomendada pela Assembléia Legislativa e ocorrida na Candelária, as pessoas foram cercadas e massacradas pela cavalaria quando saiam pacificamente da igreja. A mesma coisa ameaçava se repetir à noite.
Dom José de Castro Pinto, vigário-geral, foi pressionado para que a missa da noite não ocorresse. O clérigo se manteve firme e realizou o ato religioso ao lado de mais 15 padres. Nas ruas que davam acesso à igreja, policiais e soldados intimavam os que desejavam entrar. Precisava ter muita coragem para romper o cerco armado e muitos tiveram. Bombas de gás lacrimogêneo eram lançadas a esmo. O cheiro do gás tomou conta do interior do templo que estava completamente lotado. Todos ali temiam pelo pior. A Candelária era uma verdadeira praça de guerra.
Visando proteger os que saiam da igreja, os padres formaram um cordão de isolamento que separava o povo dos cavalarianos enfurecidos. À frente do estranho cortejo estava o vigário geral. Apenas quatro anos antes a cúpula da igreja católica abençoava os golpistas e agora protegia os contestadores do regime. As coisas, realmente, estavam mudando no país.
A Frente Ampla – rechaçada pelos estudantes no enterro de Edson Luís – pagaria a conta pelos acontecimentos daqueles dias. Em abril, no dia seguinte a missa, uma portaria do Ministro da Justiça proibiu sua existência. Estabeleceu a prisão de quem, estando banido ou cassado, fizesse qualquer pronunciamento político. “O governo foi ao cerne da crise estudantil ao decidir proscrever a Frente Ampla, jogando-a na clandestinidade. As manifestações de rua provaram que a semeadura da Frente Ampla estava caindo em terreno favorável (...) A linha da agitação correspondeu inteiramente à linha de ação política da Frente Ampla”, afirmou alguém ligado ao regime.
A morte de Edson Luís ocasionou uma mudança de posição política das classes médias em relação ao movimento estudantil. Passaram a reconhecer nele um certo papel de vanguarda de suas aspirações democráticas. De um apoio difuso passou-se a um apoio ativo.
Após a missa, a diretiva da União Metropolitana dos Estudantes foi para que os estudantes voltassem para dentro das universidades. Vladimir Palmeira, presidente da entidade, afirmou: “Ultrapassada a última fase de manifestações a palavra de ordem é retornar às escolas, promovendo assembléias para o debate político dos acontecimentos e para a estruturação das medidas necessárias ao atendimento das reivindicações específicas da classe estudantil”.
O recuo foi provisório. Dentro de mais alguns meses o movimento estudantil e popular tomaria novamente as ruas nos maiores movimentos de enfrentamentos à ditadura militar: a sexta-feira sangrenta e a passeata dos cem mil. Esse é assunto para alguma de minhas próximas colunas.
Notas
Tratarei das razões mais profundas da crise política que eclodiu no Brasil em 1968 num artigo que sairá no próximo número da revista Princípios.
A Frente Ampla foi criada em 1966 e congregava personalidades políticas oposicionistas de diversas matrizes ideológicas, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart. A presença de Lacerda, um antigo golpista, levava que setores de esquerda alimentassem desconfiança em relação a ela.
Bibliografia
Dirceu, José e Palmeira, Vladimir – Abaixo a ditadura: movimento de 68 contado por seus líderes, Ed. Garamond, 1998.
Martins Filho, João Roberto – Movimento estudantil e ditadura militar (1964-1968), Ed. Papirus, 1987, SP.
Poerner, Artur J. – O poder jovem, Ed. Civilização brasileira, 1979.
Reis Filho, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de – 68: a paixão de uma utopia, Ed. FGV, 1988
Saes, Décio – Classe medis e sistema político no Brasil, T.A Queiroz Editor, SP, 1985
Sanfelice, José Luís – Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64, Ed. Autores Associados, 1986
Sirkis, Alfredo – Os carbonários: memórias da guerrilha perdida, Ed. Global, 1992.
Skidmore, Thomas – Brasil: de Castelo a Tancredo, Ed. Paz e Terra, SP/RJ, 1994
Valle, Maria Ribeiro do – 1969: o diálogo é a violência, Ed. Unicamp, 1999.
Ventura, Zuenir – 1968: O ano que não terminou, Ed. Nova Fronteira, 1988.
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*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
sexta-feira, 28 de março de 2008
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